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Pesquisa qualitativa em isolamento social: um paradoxo viável?

Desde março vivemos uma experiência única: a tão falada quarentena. Diversas atividades foram suspensas, sendo mantidos os chamados serviços essenciais, no intuito de diminuir a circulação de pessoas e evitar aglomerações (apesar de todas as contradições na postura do Governo Federal). No mundo acadêmico não é diferente.

Nossa nova realidade

As aulas nas instituições públicas estão suspensas, enquanto faculdades particulares migram para ferramentas de ensino à distância. No âmbito da pesquisa, em geral apenas laboratórios diretamente relacionadas à Covid-19 seguem em atividade, enquanto os demais laboratórios estão fechados. Esses pesquisadores dão seguimento como conseguem às suas pesquisas trabalhando em casa. Dependendo do tipo de pesquisa e da fase em que os projetos se encontram, os pesquisadores podem ter mais ou menos dificuldades para se ajustar a essa nova realidade. Leia aqui depoimentos de cientistas brasileiros sobre essa situação.

Se você já tem dados suficientes coletados e está em fase de análise, interpretação e redação de manuscritos, talvez fique mais fácil se adaptar para continuar o trabalho em casa. Mesmo assim, a rotina no laboratório faz falta, e os encontros rotineiros com os colegas tornavam mais fácil discutir idéias e resultados. Assim como profissionais de outras áreas, estamos aprendendo, a nos adaptando a essa comunicação virtual mais intensa. Se você está nessa fase, aqui temos dicas de e-books que podem ser úteis para preparar a sua publicação, além de outras dicas gerais para pesquisadores quarentenados. Mas se você está em fase de coleta de dados, deve estar mais preocupado ainda. Muitos de nós suspendemos a coleta de dados ou tivemos que re-desenhar os projetos a partir das recomendações de distanciamento social.

A pesquisa qualitativa das Ciências Sociais é um exemplo claro. Esse tipo de pesquisa trabalha com dados não numéricos e busca interpretar o sentido desses dados para ajudar a compreender a vida social focando em populações ou lugares específicos. Essa pesquisa qualitativa é baseada em interações cara-a-cara para a coleta de dados em trabalho de campo, com observação, imersão, entrevistas e grupos focais, por exemplo.

Como proceder então se eu tenho um projeto qualitativo e ainda estava para começar a coletar os dados?

Calma, não se desespere!

Existem vários métodos que podem ser utilizados para pesquisa qualitativa online, então vamos dar um jeito de ter esses dados sem sair de casa. Esses métodos podem ser divididos em técnicas para geração de dados (em que o pesquisador produz novos dados) e técnicas de amostragem de dados (em que o pesquisador coleta textos preexistentes). Para geração de dados, podemos tentar replicar a experiência cara-a-cara em entrevistas ou grupos focais utilizando aplicativos para vídeo-chamadas ou mesmo mensagens de texto, como o WhatsApp, por exemplo. Obviamente existem limitações. Podem haver potenciais participantes que não dispõem das tecnologias, ou que não têm uma boa conexão de internet para as vídeo-chamadas. Os questionários online são outra ferramenta a ser utilizada em que podemos solicitar que os participantes digitem respostas a perguntas abertas. Esperamos que esses dados não sejam tão ricos quanto os de entrevistas, mas esses questionários permitem que sejam coletados dados de grande número de pessoas de maneira relativamente rápida. Além disso, eles mantêm alguns benefícios relevantes da pesquisa qualitativa, como a possibilidade de encontrar alguma coisa inesperada.

Para amostragem, há uma infinidade de potenciais fontes de dados. A mídia impressa pode ser utilizada para analizar representações sociais de diversos temas. Autobiografias e blogs são narrativas disponíveis para avaliar perspectivas de experiências humanas. Cientistas sociais têm feito análises qualitativas de livros, sites, discursos políticos, debates… Além disso, no mundo virtul, os fóruns de discussão e as mídias sociais têm sido utilizadas para analisar uma infinidade de fenômenos sociais. Pesquisas sobre a propagação das fake news são um exemplo que já mencionamos aqui. Inclusive, existem arquivos abertos de dados qualitativos. Você pode buscar esses bancos de dados para investigar se podem ser utilizados na sua pesquisa. É interessante conhecer esses recursos agora, que podem ser úteis mesmo após a pandemia. Esse tipo de dado é geralmente de fácil acesso, e representa uma análise sobre o “mundo digital real”, em vez de gerar dados artificialmente com o propósito da pesquisa. Outra vantagem é do ponto de vista ético: coletar um dado já publicado é bem menos arriscado que ter um jovem pesquisador inexperiente conduzindo entrevistas sobre temas delicados.

Mas há controvérsias…

Claro que existem desvantagens em utilizar tais técnicas, e há pesquisadores que não concordam com esses métodos. Um dos questionamentos é sobre se determinados conteúdos de mídia seriam válidos como fontes de dados para pesquisa, por terem sido produzidos com objetivos específicos e passado por processos editoriais desconhecidos ao pesquisador. Aí vai depender da questão que você está abordando. É fundamental debater a validade dessas novas fontes de dados, mas a validade de entevistas e grupos focais também tem sido questionada, por conta de tendenciamentos do pesquisador e direcionamentos das perguntas.

Outro ponto sobre o qual devemos nos questionar é a própria pandemia. Quais as implicações que entrevistar os sujeitos online nesse contexto pandêmico podem ter sobre a pesquisa? Quais as questões éticas devem ser consideradas nesse momento específico? As alternativas metodológicas para conduzir as pesquisas de casa também trazem considerações éticas específicas. Um ponto central para manter em mente: a saúde e o bem-estar de pesquisadores e participantes deve ter prioridade sobre o planejamento para condução da pesquisa e sobre os prazos de defesa. Você pode mudar o seu método para conduzir entrevistas online? Então, você pode considerar se essa possibilidade não representa um estresse adicional desnecessário para os potenciais participantes. Por exemplo: entrevistar profissionais de saúde é provavelmente desnecessário, eles já estão sobrecarregados.

Em relação às técnicas de amostragem, analisar conteúdo público oficial é relativamente descomplicado do ponto de vista ético. Mas conteúdo gerado online pelo público (fóruns, blogs e comentários, por exemplo) é mais delicado. A questão primordial é o que constitui público ou privado no domínio online e como essa pesquisa seria recebida pelos indivíduos ou comunidades cujo conteúdo foi utilizado. Mantenha em mente esses questionamentos e verifique se há diretrizes oficiais da sua área para coleta de dados online. E não se esqueça de informar o seu Comitê de Ética para realizar alterações na proposta do seu projeto.

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